Breve História do Jiu Jitsu Brasileiro - Parte 2
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Em 1939 um fato pouco conhecido quase mudou o curso da história do jiujitsu no Brasil - Hélio Gracie resolveu se envolver com o judô logo após sua aposentadoria. Em 1939, uma missão da Kodokan, escola fundada por Jigoro Kano, vem ao Brasil. Este tipo de evento era comum, e servia para resolver quaisquer dúvidas que existissem em países do Ocidente sobre as diferenças do judô e os antigos estilos de jujutsu do período feudal japonês. Naquela época a palavra jiujitsu estava amplamente difundida, e a tarefa de Kotani era resolver a confusão que tomava conta do país: afinal qual é a diferença entre judô e jiujitsu? A maioria das pessoas acreditava que o judô era apenas uma luta agarrada em pé. Não só isso, muitos mestres no Brasil daquela época apresentaram judô com o nome jiujitsu o que dificultava ainda mais a missão dos enviados da Kodokan. Após participar de uma apresentação sobre o judô com a comitiva no Rio de Janeiro, Helio participou do 7º campeonato da Associação Jukendo, a primeira associação de Judô e Kendo a ser criada no Brasil. O Budo Taikai, realizado pela colônia japonesa todos os anos desde 1933, teve em 1939 a presença dos dois representantes oficiais da Kodokan: Sumiyuki Kotani e Chugo Sato.
[..] Como é do conhecimento de nossos leitores, o único elemento brasileiro que interveio no sétimo campeonato da Associação Jukendo foi o jovem e já consagrado lutador Helio Gracie. O campeão brasileiro teve oportunidade, também de medir-se com Sato e Kotani. Opinando sobre o valor de ambos, assim se expressou: "Na minha vida de lutador tenho conhecido adversários dos mais fortes e ágeis sem comtudo, me preocuparem os seus seus methodos de lutar; mas em relação aos faixas pretas Sato e Kotani, não encontro superlativo para definir as suas classes e seus conhecimentos. O que mais me impressionou foi sem dúvida a firmeza com que rematam as quedas e a maneira elegante com que trataram seus adversários. São perfeitos “gentlemen”, dignos da honrosa missão que lhes confiou o governo do Japão”. Ainda, adeantou-nos Helio: “Desde que deixei de lutar em público, como profissional, alimentei sempre o desejo de participar na categoria de amador, nos campeonatos da Jukendo; razão porque resolvi inscrever-me no sétimo campeonato realizado domingo, apesar de desconhecer quase que por completo seus regulamentos. Por isso, não pude, como era meu desejo, competir com liberdade de movimentos receioso de incorrer nalgum golpe ilicito”. -Correio Paulistano, agosto de 1939
Helio Gracie já era um lutador conhecido dentro da comunidade japonesa, depois das lutas que teve com alguns lutadores vindos do Japão como Massagoishi e Yassuichi Ono. Maravilhado pela apresentação dos representantes da Kodokan, Hélio, após as apresentações no Rio, vai à São Paulo. “Para mim, até hoje o Judô era só força!” viria a dizer Hélio Gracie ao exaltar a técnica de Kotani e seu compatriota. Com o pedido de Hélio para participar do Budo Taikai, organiza-se uma comissão do departamento de Judô da Jukendo, em que Hélio é reconhecido como segundo Dan na arte para participar do evento.
Kotani fez apresentações, visitou mestres do judô no interior e nas capitais, e tentou convencê-los a seguir as regras da Kodokan. São Paulo, como um estado importante no Brasil e um dos principais centros de imigração japonesa, era o principal local de residência da maioria dos judocas japoneses que haviam recebido seu treinamento pela Butokukai, a rival da Kodokan no Japão. Por isso, o estado se tornou o palco principal do conflito judô x jiujitsu. Isso deu início a uma rivalidade que persistiria por alguns anos, conhecida como “rivalidade entre a Kodokan contra Ogawa e os irmãos Ono”.
À parte deste conflito entre os grupos japoneses, estavam os Gracies. Os Gracies eram o principal, senão o único, grupo de professores de jiujitsu não conectados a nenhum mestre japonês. Embora Carlos e Hélio tenham compartilhado conhecimento com muitas pessoas ao longo de muitos anos, eles nunca reconheceriam ninguém além de Maeda Mitsuyo como a fonte de suas técnicas. No entanto, embora Maeda ainda estivesse vivo após o início da operação da Academia Gracie, Carlos nunca mais encontrou Maeda (ao contrário de Geo Omori e Yano Takeo que se comunicavam com o mestre). Se Carlos, de fato, conheceu Maeda em sua jornada inicial de jiujitsu, sua conexão com seu professor foi interrompida logo depois que ele deixou o Pará. Os Gracie eram, portanto, independentes de qualquer grupo e adquiriram, através da luta de ringue, legitimidade como líderes da arte. Proponentes das lutas profissionais no ringue, os irmãos Gracie acabavam se alinhando com o grupo de japoneses que negava a Kodokan, e continuava a usar o nome de jiujitsu.
Durante a aposentadoria de Helio, a Academia Gracie foi fechada. Carlos mudou-se para vários estados diferentes, e Carlos e Hélio não estavam na capa dos jornais tanto quanto antes. No início de 1950, Helio decidiu encerrar seu tempo fora dos holofotes da imprensa. Naquela época, ele estava ensinando apenas alguns alunos em sua residência no Rio de Janeiro. O judô estava ganhando popularidade crescente, principalmente porque seus alunos, diferentes das escolas de jiujitsu, podiam participar de torneios amadores nos modelos da Kodokan. A comunidade de praticantes de jiujitsu começou a solicitar mais competições para os estudantes comuns, em oposição aos desafios em que aqueles considerados profissionais lutavam por prêmios em dinheiro.
Pouco tempo após retornar para as manchetes, como é amplamente conhecido, Helio Gracie ganhou muita visibilidade na mídia após as lutas contra Kato Yukio e Kimura Masahiko. Isso permitiu que Carlos e Hélio abrissem novamente a Academia Gracie, desta vez no centro do Rio de Janeiro, recuperando sua notoriedade. Apesar da fama dos Gracie, o jiujitsu continuou a perder popularidade para judô.
Em outubro de 1952, um novo grupo de missionários da Kodokan veio para o Brasil, formado por Takagaki Shinzo, 8º dan, Yoshimatsu Yoshihiko, 7º dan, e Osawa Yoshimi, 5º dan. Mais uma vez, esse grupo de representantes da Kodokan esperava unir todos os praticantes de judô no Brasil em torno de um objetivo comum. Apesar da criação da Associação Jukendo em São Paulo, anos depois, o país ainda não tinha uma federação de judô. Ainda que organização de torneios estivesse crescendo pouco a pouco o judô continuava sendo regulado pela Federação de Pugilismo. Osawa (hoje um dos três 10º dan da Kodokan) lutou contra 15 judocas da Academia Budokan, liderada por Ogawa Ryuzo, e venceu todas as partidas. Essa competição foi chamada de A Grande Competição Brasileira de Judô e envolveu o Departamento de Esportes do Estado de São Paulo e o Consulado Geral do Japão. Também participaram do evento as Academias de Ono, Jaraguá, Taipas, Jabaquara, Naito, Esporte Clube Pinheiros e Yoshima. Este foi um marco na unificação do judô brasileiro, e o início da adoção do termo judô por várias academias que ensinavam o jiujitsu. Destaca-se ainda que, após o fim da Segunda Guerra Mundial a Dai Nippon Butokukai foi dissolvida pela ocupação Norte Americana, com isso os membros da Butokukai no Brasil naturalmente se viram incentivados a migrar para as novas iniciativas lideradas pela Kodokan.
Obrigado a se reinventar, o jiujitsu começou a tentar se organizar durante o mesmo período. Como um contraponto aos torneios de judô, o primeiro torneio amador de jiu-jitsu do Rio foi realizado em 1950. Participaram deste evento as academias Gracie, Cordeiro, Natação e Maia. A maior rival da Academia Gracie entre eles era a academia de Augusto Cordeiro, representante da Budokan de Ogawa no Rio de Janeiro. Também participaram desta competição Oswaldo Fadda, que acabara de abrir sua academia em Bento Ribeiro, no estado do Rio de Janeiro. Cordeiro, no entanto, tornou-se cada vez mais envolvido com o judô nos anos seguintes. Ele ainda iria ao Japão para estudar na Kodokan, o que afastou de vez sua forma de ver o jiujitsu. Como Cordeiro começou a aceitar lutas apenas de acordo com as regras da Kodokan, a academia de Oswaldo Fadda se tornou o principal antagonista dos Gracies, a rivalidade se tornou mais evidente após um evento em que os estudantes dos Gracie venceram sete partidas, empataram quatro e perderam três contra a academia Fadda. Apesar desses esforços, o jiujitsu como modalidade estava lutando para sobreviver no Brasil.
Hoje apenas em dois a três lugares se faz “jiu-jitsu” no Brasil. Há muito ele é um esporte superado e sem razão de ser. Mesmo no Japão com o aparecimento da “Kodokan”, ele deixou de existir, provando-se continuamente a sua ineficiência. […] Enquanto o Jiujitsu terminou por desaparecer praticamente, o “judô” vai ganhando dia a dia novos adeptos. É tão grande a evolução do esporte que, quando conseguimos dar a ele organização ideal, que merece o Brasil, será o segundo país Mundo, inferiorizado apenas pelo Japão. ” -Augusto Cordeiro para o jornal Diário da Noite, dezembro de 1957
Em 1956, Kihara Yoshio, 7º dan, chegou ao Brasil com a missão de traçar uma linha clara que separaria o judô do jiujitsu brasileiro. Depois que os torneios que usam as regras japonesas começaram a crescer no Brasil, o próximo passo foi a introdução do Kodokan Kata. Como não havia uma metodologia padrão de ensino entre as escolas de judô, o Nage no Kata e também os outros katas da Kodokan não eram conhecidos pela maioria dos instrutores de judô do país. O Campeonato Mundial de judô, em 1956, foi a peça final para atrair muitos mestres de judô à ideia de unir todas as academias em uma única federação de judô.
[...]nessa sua vinda, recebeu o Prof. Kihara do Kodokan a incumbência de implantar aqui o nage-no-kata que até então era quase desconhecido entre nós, e ainda, como nessa época, ainda não havia distinção entre judô e jiujitsu, nas suas atribuições estava também a separação definitiva dessas duas modalidades, e assim a confirmação e consolidação do judô como veio realmente a acontecer. Porém, podemos constar que essa separação foi e continuou a ser combatida por algumas entidades que queriam manter o status quo vigente, também porque, não queriam subordinar-se ao Kodokan, e entre elas estavam os seus professores Ogawa, Terazaki e Ono, que preferiam manter-se independentes.” -Stanley Virgílio, Personagens e Histórias do Judô Brasileiro, 2002
Em 1958, a Federação de Judô de São Paulo foi fundada, a primeira federação de judô do Brasil. Depois disso, a Federação do Rio fundada por Augusto Cordeiro abriu em 1962 e, em 1969, a primeira confederação nacional de judô nasceu. Com isso, o judô brasileiro começou a assumir a forma que já possuía no resto do mundo, usando as regras japonesas e o ensino dos Katas da Kodokan.
No final da década de 1950, o jiujitsu e o judô se tornaram duas entidades completamente diferentes. Quando os Gracie perceberam que o jiujitsu estava começando a perder sua popularidade para o judô, a fundação de uma federação de jiujitsu era inevitável. Em 12 de julho de 1973, depois de seis anos tentando, os praticantes de jiujitsu fudaram sua organização. Hélio e Carlos Gracie receberam de Jeronimo Bastos, presidente da Confederação Nacional do Esporte, o documento oficial da fundação da Federação Carioca de Jiujitsu, com base na Rua Rodrigo Silva, número 18. A partir desse dia, os dois estilos seguiram caminhos separados de fato. Com o tempo, todas as linhagens sobreviventes de jiujitsu foram incorporadas à federação fundada pelos Gracie e, atualmente, no Brasil, a grande maioria das academias segue a linhagem Gracie. Oswaldo Fadda participou do judô e do jiujitsu, mas como estava envolvido com a Federação de Pugilismo que continuava a permitir as lutas de ringue optou por se manter fiel ao segundo. A linhagem Fadda permaneceu como outra sobrevivente do jiujitsu no Brasil.
Muitos detalhes e nuances podem ser incorporados a um texto que fala sobre a história do jiujitsu brasileiro. Muitas pessoas foram influentes em todo esse processo, que durou mais de 80 anos e continua sendo reescrito todos os dias. Não é possível desenhar uma imagem completa de toda a história em um único artigo, e assim, seguiremos em outros posts conversando sobre os detalhes de todo este processo. A segunda geração da família Gracie chegou e, assim como a dos primeiros irmãos Gracie, continuou a moldar e atualizar a arte ao longo do tempo. Ainda hoje, quando vemos o avanço do jiujitsu esportivo brasileiro em detrimento da Defesa Pessoal, a família Gracie surge como o ponto de apoio que mantém vivas as raízes e tradições do jiujitsu brasileiro, uma arte introduzida por Maeda da Kodokan, mas que encontrou seu próprio caminho em solo brasileiro.
*Encontre também uma versão, em inglês, deste texto de minha autoria no blog KogenBudo.
ありがとうございました。
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